quarta-feira, 14 de março de 2012

Aquarela do Brasil: Limites e Possibilidades

Poderia ter sido uma sentença de morte. O coito numa noite de eclipse era no mínimo arriscado. Que pensavam seus pais? Que amor desmedido é esse que não poderia esperar minutos para ser exercido? As previsões científicas se confirmaram. Ter ocorrido à concepção em pleno eclipse lhe imputaram marcas. Não era o menino Jesus mais ao nascer toda comunidade comentava o fato. Em termos quantitativos, alguns afirmam que seu nascimento atingiu ouvidos de maior número de pessoas. Especulava-se que pelas suas características tratava-se de um ser dotado de poderes especiais, previsões não confirmadas. Era humano, barroco entre o sagrado e o profano. Outros especulavam acerca das suas características físicas associando-o a mitos que povoam o imaginário da comunidade, Lobisomem? Curupira? Cada comunidade elege seus perigos potenciais. As teorias de Lombroso teriam lhe garantido uma sentença.
O certo é que suas características provocavam a curiosidade, todos queriam vê-lo, presenteá-lo. Mas que tipo de presente oferecer? O que exatamente poderia combinar com um ser de características tão singulares? Eram essas algumas das questões que provocavam grandes ansiedades nas pessoas próximas.
Apesar das tormentas, foi sem dúvida uma criança de sorte, nascerá num tempo onde suas características físicas lhe permitiam transitar em potencial nos diferentes espaços da sociedade. Tudo que o envolvia era tão confuso que só foi possível dar-lhe um nome aos 7 anos de idade, chamaram-no de BlackWhite depois de haver experimentado inúmeros apelidos. Até a adolescência levou uma vida dignamente normal, foi acolhido nos laços sociais comunitários e pôde conviver com pessoas da sua idade. Suas características lhe renderam alguns romances motivados pelo desejo feminino de experimentar o singular, o único. Exercia com muita competência o papel de bandeirante do prazer. A família e a escola foram dois importantes núcleos de socialização e instrumentalização para vida que seguia. Foi chegada à hora de bater asas, alçar novos vôos.
No panorama geral, as transformações sociais e os avanços políticos recentes em seu país produziram condições históricas que lançaram BlackWhite numa crise de identidade nunca antes experimentada. Hora de fazer novas escolhas, consolidar hábitos. Mas que hábitos, que escolhas? Mas quem era esse homem, o que de fato lhe tornava tão especial?
BlackWhite é fruto de um coito realizado sob tabus científicos construídos sob forte influência da elite brasileira. Seus pais se amaram em pleno eclipse desafiando todas as leis da física conceptiva. O resultado foi uma criança que nasceu sob influência celeste marcante, trouxe na pele a marca dos astros. Nasceu com uma pele dividida em duas cores. Era metade branca metade preta. As pessoas que o viam de perfil não poderiam imaginar que do outro lado existia uma cor “diferente”. BlackWhite durante muito tempo brincou com a situação e ao deparar-se com crianças movia o pescoço em 180º, fazia esse movimento lentamente e muitas vezes conseguiu sorrisos tantas outras lagrimas, em síntese, divertia-se.
BW para os íntimos experimentava uma condição existencial quase esquizofrênica. Parecia viver em realidades paralelas. Numa sociedade CorMente determinada, possuir diferentes tonalidades na pele em diferentes oportunidades foi motivo de sofrimento intenso. A cor da pele poderia ser utilizada como condição para ter acesso a diferentes lugares ou não. Se apresentar as pessoas com o lado branco do rosto lhe garantia alguns privilégios e boa educação por parte dos outros. Se apresentar com o lado negro do rosto lhe garantia a possibilidade de acesso por cotas na Universidade alem do status de um bom capoeirista. Quando sofria preconceitos, rapidamente girava 180º e combatia as ofensas com uma tonalidade de voz e pensamentos em defesa do lado ofendido. Certa feita ao visitar determinado restaurante onde os brancos freqüentavam já não sabia como se comportar. Nada dizia que negros não poderiam entrar. Mas era obvio, ou melhor, era nítido que existia um preconceito simbólico. BW sentia-se ameaçado, confuso. Ao deparar-se com o segurança do restaurante, se pôs a girar em 360º graus, se mostrava branco negro, negro e branco, branco e negro, negro e branco instalando uma confusão, já que alguns clientes aguardados entrariam na condição de convidado, o que levou o segurança a perder-se entre as fisionomias registradas em sua lista.
O convívio na sociedade que não os laços familiares reservaram a BW doses cada vez maiores de sofrimento. Era cada vez mais difícil desvencilhar-se de preconceitos. Tudo isso exigia uma energia desmedida, ser branco não era tão ruim, mais ser negro exigia de BW doses muito elevadas de energia para existir. A conclusão a que chegou foi: se eu sou negro 50% e sofro tanto, o que é ser 100% negro no Brasil considerando toda história? A partir dessa reflexão, fez sua escolha, BW resolveu dedicar-se a militância.
Sonhava com uma sociedade sem preconceitos, acreditava nisso, idolatrava Luther King, Mandela, Stive Biko, Zumbi entre tantos outros. Era devoto dos Malês, só não apoiava o extermínio dos brancos, no entanto, entendia que defender tal ideia era legitima quando não se tinha liberdade no passado. Sempre que tinha oportunidade lamentava os massacres em Ruanda. Tinha um discurso local, queria praticas locais e resultados globais. Certo dia, em uma das poucas entrevistas que concedeu, pôde dizer em poucas palavras tudo àquilo que sentia e pensava. Seguem-se trechos da entrevista:
“Vivo e sinto. Minhas características físicas associadas ao momento histórico em que vivo me permitem um discurso honesto. Vim para iluminar potencializar apagando e acendendo as luzes acesas no século 18. É hora de apresentar a fatura de um discurso falso de democracia e exigir a liberdade e igualdade que ao serem pregadas pregaram meu povo em algum lugar para de lá não saírem. É hora de aprofundar as conquistas, consolidar os avanços e derrubar toda e qualquer barreira que impeçam as pessoas de terem melhores condições e igualdade de oportunidades. A educação é uma saída, no entanto, a qualidade da educação deve ser priorizada. Os aspectos técnicos devem dialogar com os aspectos humanísticos independente do contexto”. Disse ainda: “os avanços políticos do país não foram dádivas divinas, os mesmos devem ser afirmados enquanto política de Estado, eles são resultado de embate político e argumentação consistente na defesa de direitos garantidos pela constituição brasileira. A tomada de consciência dos avanços e dos mecanismos pelos quais foram conquistados é obrigação de toda minoria ou maioria excluída. A prática política é onde se abre caminhos de possibilidades para redução das desigualdades. As conquistas não caem do céu ou são fruto da boa vontade”.
Hoje as noticias que chegam acerca de BW são as de que ele segue afirmando suas crenças e valores. Tem vivido a Universidade e observado por dentro os efeitos das políticas de ações afirmativas e permanência onde atualmente já não é difícil avaliar os alcances e limites dessas conquistas. Os entraves são muitos, os méritos maiores e os limites encontrados serão superados, o velho BW continua confiante, pois bem sabe que escolhas realizadas são sentenças instauradas.
Desejamos que a história de BW não seja pontual, sabe-se que em quase todo Brasil já se ouviu falar da sua vida. Existe um pedaço da narrativa comum a todos denunciando que ser igual nas diferenças é nossa lei irrefutável. A vida de BW é como um espelho onde os brasileiros reconhecem a si e aos seus antepassados. BW é preto e é branco e num país miscigenado não é difícil que sua palavra toque cada um em seu pedaço mais intimo, pois no Brasil a maior das purezas é intensamente misturada.